QUEDA DE BRAÇO INSTITUCIONAL INIBE O COMBATE À CORRUPÇÃO

Enquanto diversas instituições (MP, CGU, TCU, entre outros), reclamam a legitimidade para assumir o protagonismo de condução dos Acordos de Leniência, questões fundamentais do combate à corrupção ficam sem solução, emperradas na disputa por poder estabelecida entre aquelas instituições.

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A leniência do poder público

A Lava Jato ofereceu ao país uma chance de mudar a relação entre Estado e empresas. Hoje, ficou mais difícil acreditar nisso

A Operação Lava Jato oferecia ao Brasil uma oportunidade não apenas de combater a corrupção, mas de transformar a relação entre o Estado e as empresas e de reduzir o espaço para nosso capitalismo de compadrio (leia a respeito aqui). Fica a cada dia mais difícil acreditar que isso acontecerá.

Desde o início, houve dezenas de projetos de lei no Congresso voltados para aliviar a barra dos acusados – da tentativa a anistia de caixa dois às diversas versões da lei de abuso de autoridades para cercear juízes e procuradoes. Não houve, infelizmente, o mesmo empenho para mexer na estrutura de incentivos que o Estado brasileiro oferece às empresas e induz, quase como corolário, ao relacionamento corrupto.

Mesmo avanços, como a Lei Anticorrupção de 2013 – ela entrou em vigor em 28 de janeiro de 2014, às vésperas da Lava Jato –, acabaram deixando brechas que, se permanecerem, continuarão a incentivar o empresário a se relacionar com o Estado fora da lei.

A corrupção viceja quando os caminhos que a lei oferece são tortuosos, incertos e mais difíceis que o pagamento de propina. Onde há insegurança jurídica e dificuldade para disciplinar a ação do Estado, continua a haver um terreno fértil para o funcionário corrupto.

Isso fica claro no exemplo dos acordos de leniência, tema do primeiro encontro do recém-fundado Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE), na última sexta-feira em São Paulo. O evento reuniu representantes de sete organismos da administração pública: Polícia Federal (PF), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Controladoria Geral da União (CGU), Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério Público (MP) e Banco Central (convidada, a Advocacia Geral da União, AGU, não enviou o seu).

Só a quantidade de nomes e siglas com que uma empresa pode precisar se relacionar para manter a segurança jurídica no Brasil já dá uma ideia do custo de cumprir a lei. Transcrito, o diálogo à mesa do seminário poderia ser assinado por Franz Kafka sem causar estranheza.

Quem acha que a discussão sobre delação premiada se restringe à disputa entre PF e MP que deverá ser decidida nesta semana pelo Supremo Tribunal Federal (STF) mal roçou a questão. O Estado brasileiro não se acerta em inúmeras outras direções. Quando uma empresa decide colaborar com a Justiça e fechar acordos de leniência (a delação corporativa), precisa enfrentar tensões entre TCU e CGU, MP e CGU, Cade e TCU – e por aí afora.

As primeiras empresas que fecharam os acordos de leniência da Lava Jato com a CGU – Andrade Gutierrez e UTC – ainda enfrentam o risco de ser consideradas inidôneas pelo TCU (organismo em que quatro dos nove ministros são investigados na Lava Jato).

Mesmo depois de uma empresa fechar um acordo, os valores acertados para indenização estão sujeitos a contestação pelo TCU (especializado em estimar danos). Os funcionários dela ainda podem ser arrolados em ações de improbidade movidas pelo MP contra agentes públicos (as ações de improbidade eram a principal, senão única, arma de combate à corrupção antes da lei de 2014).

Há um debate robusto sobre como avaliar os danos causados pela corrupção. “Os primeiros acordos da Lava Jato careciam de metodologia para o fechamento de valores”, disse o ministro da CGU Wagner Rosário. Não há, em consequência, garantia de que valores acertados com um dos órgãos serão respeitados pelos demais.

A Lei Anticorrupção atribui à CGU a responsabilidade por negociar a leniência corporativa. A principal omissão diz respeito ao papel do TCU. “No sistema U, o TCU trava o acordo de leniência”, afirmou o presidente do tribunal, Raimundo Carreiro. Ele argumenta que a Lei Anticorrupção abriu um vácuo, e o TCU foi obrigado a emitir uma norma interna para apreciar a validade dos acordos firmados pela CGU. “Como participar nessas condições?”

Do ponto de vista da empresa, o TCU continua com plena autonomia para declará-la inidônea e, em alguns casos, apenas isso é capaz de levá-la à bancarrota. O correto seria que representantes do tribunal acompanhassem os acordos e, na assinatura, abrissem mão da declaração de inidoneidade.

Um exemplo de eficácia é dado pelo Cade, que fechou 82 acordos de leniência desde 2014 – só neste ano, foram 31, mais da metade relativos à Lava Jato. “Nunca assinamos um acordo sem a presença do MP. Isso gera segurança jurídica”, disse Alexandre Cordeiro, presidente do Cade. Mas o Cade atua apenas sobre um tipo de crime: formação de cartel. A lei que regula sua ação, de 2011, foi testada longe dos holofotes, com tempo para aprendizado.

Aprovada neste ano, a lei que regula o mercado financeiro, relativa a BC e CVM, é promissora ao ampliar os recursos disponíveis às autoridades e a probabilidade de punição. “O interesse em colaborar tende a ser maior”, afirmou Isaac Sidney, diretor de relacionamento do BC. A CVM tem pelo menos 20 anos de experiência no combate ao uso de informações privilegiadas. Mesmo assim, as garras da nova lei ainda precisam ser testadas com o tempo.

O principal desafio do poder público é, nas palavras do ex-ministro do Planejamento e ex-ministro-chefe da CGU Valdir Simão, “alcançar previsibilidade e segurança jurídica”. Verdade que, no discurso, representantes dos braços do Estado manifestam boa vontade em colaborar. Na prática, ainda falta coordenação e sobra espaço para as cabeças baterem. Para as empresas, continua mais barato pagar propina.



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