O COMPLIANCE E A MUDANÇA DE PARADIGMA ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Encontra-se absolutamente na ordem do dia o termo Compliance, sendo repetido incontáveis vezes em matérias jornalísticas, sobretudo aquelas relativas à Operação Lava Jato, ou em referência aos Acordos de Leniência, revelando-se, inclusive, como estopim de uma severa crise institucional do Ministério Público Federal, na medida em que, é de conhecimento nacional, que um dos procuradores daquela instituição deixou seu cargo para atuar na área de Compliance[1] de uma das empresas envolvidas neste grandioso escândalo de corrupção, comportamento que, por si só, denota muito pouco ou nenhum Compliance.

Com efeito, esse instituto ainda pouco conhecido e estudado no Brasil, não tem, em verdade, nada de novo.

Sua genealogia se encontra, geograficamente, nos Estados Unidos, enquanto a temporalidade existencial do instituto, naquele país, remonta há mais de cinco décadas.

fotoPodemos afirmar que iniciativas como a criação do SEC (Security and Exchange Commission)[2], em 06 de junho de 1934, que para efeitos didáticos, assemelha-se à nossa Comissão de Valores Mobiliários, já poderiam ser consideradas propostas vestibulares de Compliance, sobretudo porque, naquela quadra, a regulamentação do mercado de capitais se tornou urgente e mandatória para a economia americana, especialmente em razão do “Crash da Bolsa de Nova York”[3], que inaugurou o período denominado de “grande depressão”, gerando efeitos devastadores em todas as economias ocidentais industrializadas.

Veja-se, da presente exposição, que a necessidade de contenção dos efeitos deletérios da contaminação do mercado de capitais, na economia estadunidense, impôs a criação de mecanismos de regulação e responsabilização, deferindo-se à SEC, inclusive, competência em matéria de persecução penal.

Duas décadas mais tarde, em um período pós segunda guerra mundial, a economia dos EUA se encontrava pujante, favorecida, principalmente, pela possibilidade de fornecer produtos e serviços a uma Europa devastada.

Essa fase de crescimento e abundância econômica dos Estados Unidos sofreu novo revés na década de 1970, quando eclodiram, por lá, incontáveis casos de corrupção, sendo o mais emblemático, o famoso escândalo intitulado “Watergate[4].

Neste ponto, assinalamos uma interessante coincidência histórica, relativamente à notoriedade e evolução do instituto do Compliance, que aproxima o Brasil e os Estados Unidos, especialmente, no que tange aos fatos que emprestaram relevância ao Compliance.

Na década de 1970 os casos de corrupção se multiplicaram nos EUA, ocorrendo, dentre eles, um que foi capaz, inclusive, de levar à queda do presidente americano Richard Nixon, sendo certo que, foi também naquela quadra que se promulgou o FCPA (Foreign Corrupt Practices Act – 1977), a lei americana anticorrupção, que mesmo nos dias atuais, continua sendo paradigma internacional de normatização da matéria.

Coincidentemente, por aqui, vivemos tempos de reiterados escândalos de corrupção (como na América da década de 1970), também assistimos à queda de uma presidente da república (ainda que por razões muito questionáveis), ao passo que promulgamos a nossa primeira lei brasileira anticorrupção (12.846/13)[5].

Deve-se destacar que o lapso temporal entre a promulgação da primeira lei americana anticorrupção (1977), e a lei brasileira de mesmo caráter (2013), é um fator sintomático do descaso político do nosso país, relativamente às questões que envolvem corrupção corporativa, tornando o Brasil um fértil terreno para as práticas criminosas que hoje estão em apuração nas grandes operações.

Merece destaque, igualmente, que após a promulgação do FCPA, nos EUA, diversas outras leis de caráter anticorrupção foram editadas naquele país, com especial menção à Sarbanes-Oxley[6] (ou simplesmente SOX), Doddy-Frank Act[7] e o FATCA[8], entre outras.

No Brasil não tem sido diferente, seguindo-se à Lei Anticorrupção, vieram o seu decreto regulamentador 8.420/15[9], bem como diversas leis estaduais de caráter anticorrupção, tornando Programas de Integridade (leia-se, Compliance), mandatórios às pessoas jurídicas que contratem com a administração pública, a exemplo da recente Lei 7.753/17[10] promulgada no estado do Rio de Janeiro, que assim prescreve:

“DISPÕE SOBRE A INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA DE INTEGRIDADE NAS EMPRESAS QUE CONTRATAREM COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E DÁ OUTRAS PROVIDENCIAS

Art. 1º – Fica estabelecida a exigência do Programa de Integridade às empresas que celebrarem contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado com a administração pública direta, indireta e fundacional do Estado do Rio de Janeiro, cujos limites em valor sejam superiores ao da modalidade de licitação por concorrência, sendo R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) para obras e serviços de engenharia e R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços, mesmo que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias.”

O fato é que o Compliance, aos poucos, vai perdendo o estigma de “mera cultura ou modismo”, tornando-se regra cogente no ambiente normativo brasileiro, a exemplo do que já acontece, há décadas, no cenário internacional, estabelecendo-se, inexoravelmente, uma nova dialética entre o público e o privado nas relações negociais.

As razões que levaram a essa mudança postural são as mais variadas, perpassando pelas agruras impostas pela Operação Lava Jato, mas, sobretudo, para atender a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, em acordos, tratados e convenções internacionais (ONU, OCDE, entre outros).

Na perspectiva empresarial contemporânea, torna-se um gigantesco equívoco dispensar a implantação e gestão de Programas de Compliance, como forma de prevenção, detecção e remediação de desconformidades corporativas, sobretudo a corrupção, especialmente por ser considerado, este instituto, requisito essencial para consecução dos Acordos de Leniência[11], os quais, uma vez celebrados, podem ser determinantes para o abrandamento das gigantescas multas aplicadas hodiernamente às empresas (reduções em até dois terços), e neste sentido destacamos:

Decreto nº 8.420/15:

Art. 37. O acordo de leniência conterá, entre outras disposições, cláusulas que versem sobre:

I – o compromisso de cumprimento dos requisitos previstos nos incisos II a V do caput do art. 30;

II – a perda dos benefícios pactuados, em caso de descumprimento do acordo;

III – a natureza de título executivo extrajudicial do instrumento do acordo, nos termos do inciso II do caput do art. 585 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973; e

IV – a adoção, aplicação ou aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme os parâmetros estabelecidos no Capítulo IV.

Com efeito, também como corolário do cumprimento dos Acordos de Leniência, os quais só podem ser celebrados com a demonstração da existência de Programas de Compliance efetivos (posto se tratar de requisito), existem outros efeitos fundamentais às corporações, bem como ao universo empresarial, sem os quais, grande parcela das pessoas jurídicas, sobretudo aquelas que dependem de contratação com a administração pública, estariam feridas de morte em sua atuação negocial, no que destacamos:

Decreto nº 8.420/15:

Art. 40.  Uma vez cumprido o acordo de leniência pela pessoa jurídica colaboradora, serão declarados em favor da pessoa jurídica signatária, nos termos previamente firmados no acordo, um ou mais dos seguintes efeitos:

I – isenção da publicação extraordinária da decisão administrativa sancionadora;

II – isenção da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicos e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo Poder Público;

III – redução do valor final da multa aplicável, observado o disposto no art. 23; ou

IV – isenção ou atenuação das sanções administrativas previstas nos art. 86 a art. 88 da Lei no 8.666, de 1993, ou de outras normas de licitações e contratos.

Para além dos benefícios corporativos introduzidos pelo Compliance, em regra determinantes, inclusive, para a subsistência ou continuidade da pessoa jurídica no mercado, a proteção jurídica daquele instituto, relativamente aos sócios e gestores, em tempos de maxi processos, pode ser o fiel da balança entre prisão e liberdade, especialmente quando bem trabalhados os estamentos do Criminal Compliance.

Isso porque, a Lei 12.846/13 proclamou a responsabilização objetiva[12] das pessoas jurídicas, somente nas esferas civil e administrativa, descolando-se do paradigma internacional de responsabilização criminal dos entes coletivos (mantendo apenas a isolada previsão do art. 225, § 3º da CF/88), toda vez que as pessoas jurídicas incorrerem nos denominados “atos lesivos à administração pública”, previstos no art. 5º da Lei Anticorrupção.

Dessa forma, para se iniciar um PAR[13] (Processo Administrativo de Responsabilização) em face de uma pessoa jurídica, faz-se necessário a constatação da ocorrência de um daqueles atos lesivos (art. 5º, Lei 12.846/13), inaugurando-se a persecução civil e administrativa, de natureza objetiva, do ente coletivo.

Entretanto, não se pode olvidar, que o legislador criou um quadro de correlação entre condutas, atribuindo, para cada “ato lesivo à administração”, um comportamento equivalente a uma figura típica penal.

Em outras palavras, toda vez que a empresa incidir em um ato lesivo, consequentemente alguém, na estrutura de gestão (sócio, gestor, administrador etc), estará incorrendo na prática de um crime, advindo, dessa afirmação, a necessidade extrema dos cuidados e prevenções próprios do Criminal Compliance, como forma de alargar o espectro de proteção jurídica de gestores, diretores e sócios das corporações.

Resta estabelecido um novo paradigma comportamental entre o público e o privado, onde empresários estão descobrindo, no Brasil, pela forma mais dolorosa (multas, perda reputacional e prisões), o alto custo do não Compliance, ladeados aos efeitos corporativos, patrimoniais e pessoais (sobretudo criminais), advindos do menoscabo às regras de integridade.

 

James Walker Júnior

Advogado criminalista, professor da pós-graduação em Compliance da FGV Direito Rio, professor da pós-graduação em Direito Penal Empresarial da IBMEC, especialista em Compliance pela Fordham University – NY, especialista em Direito Penal e Compliance pela Universidade de Coimbra, Doutorando em Ciências Jurídicas pela UAL Universidade Autônoma de Lisboa, Presidente da Comissão de Compliance e Anticorrupção da OAB Barra, Presidente do IBC Instituto Brasileiro de Compliance, Presidente da ABRACRIM-RJ.

 

[1] Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,procurador-que-fechou-delacoes-da-lava-jato-deixa-ministerio-publico-para-advogar,70001689407. Acessado em 19/12/2017.

[2] Sobre a SEC: Disponível em: https://www.sec.gov/. Acessado em 19/12/2017.

[3] Sobre o “Crash da Bolsa de Nova York”: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ter%C3%A7a-Feira_Negra. Acessado em 20/12/2017.

[4] Sobre “Watergate”: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Watergate. Acessado em 20/12/2017.

[5] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acessado em 20/12/2017.

[6] Ver mais em: http://www.soxlaw.com/. Acessado em 21/12/2017.

[7] Disponível em: https://www.govtrack.us/congress/bills/111/hr4173/text. Acessado em 21/12/2017.

[8] O FATCA foi, inclusive, internalizado no sistema normativo brasileiro, através do Dec. 8.506/15, o qual “Promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do FATCA, firmado em Brasília, em 23 de setembro de 2014”. (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8506.htm).

[9] Disponível para consulta em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/D8420.htm. Último acesso em21/12/2017.

[10] Disponível em: https://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/511266335/lei-7753-17-rio-de-janeiro-rj. Acessado em 21/12/2017.

[11] Com previsão entre os arts. 28 e 40 do Decreto 8.420/15. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/D8420.htm. Último acesso em 21/12/2017.

[12] Lei 12.846/13. Art. 2o  As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não.

[13] Vide artigos 8º ao 15 da Lei 12.846/13. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em 23/12/2017.



Autor: James Walker Júnior
Presidente do IBC Instituto Brasileiro de Compliance, Advogado criminalista, professor de Direito Penal, Processual Penal e Compliance desde 1994 em universidades do Rio de Janeiro; especialista em Direito Penal e Compliance pela Universidade de Coimbra – Portugal; Doutorando em Ciências Jurídicas pela UAL – Universidade Autônoma de Lisboa – Portugal; Catedrático da Academia Nacional de Economia (cátedra 155); Presidente da Comissão de Anticorrupção e Compliance da OAB Barra RJ, Palestrante e Conferencista em diversos cursos, seminários e congressos; Sócio do Escritório Walker Advogados Associados.

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